Diario de Campo

Neste “Diário de Campo” há alguns poemas meus que, penso, podem ajudar a “afinar o espírito”, principalmente 
para quem acredita que a antropologia (como a vida) está, como diz Michael Taussig, "entre a poesia e o raio-X"

ikomojadê

certo povo africano
acredita que uma criança ao nascer
finca um pé neste mundo
enquanto o outro permanece
na superfície das estrelas
é preciso então convencer seu espirito
a pisar com os dois pés
no pó deste chão
a que chamamos continente
talvez realidade
ou mais acertadamente
impermanência
a convencê-la:
o sabor do mel
o tempero do sal
amor sem contrário
o cheiro dos pomares
e a inebriância dos álcoois
findo o rito
segue o destino seu caminho
mesmo à revelia do que ficou para trás
o céu estrelado do ventre
e o que vem antes dele
a preencher de oco as tocas

no livro de você
quero ser primeira
e quarta capa
prefácio e orelha
anunciar ao leitor
onde se lê
a fonte do que segue escrito
leia-se muito mais houve
mas isso
ah, isso não há como ser dito
 
(para rita amaral, 1958-2011)

 

levistraussiana

hoje quando um bando de feixe de luz
caiu dos postes sob os quais
minha alma andava cabisbaixa e rota
faíscas percorreram o asfalto
e tufões de sussurros escaparam
pelas fendas dilatadas dos olhos
o céu fez um compasso
deu dois passos pra trás
se abriu em copas
mas seguiu adiante
nada havia ali senão 
versinhos e versões
do que se viveu
do que não se viveu
às vezes o tempo pára
no espelho 
 onde o cabelo é cortado
no ar inspirado
da próxima palavra
que conectada a essa
forma fios 
luz entre folhas
ventos estagnados entre caules e podas
um momento sem fôlego
que dita em sua vida 
um infinito antes
um mais que pretérito
depois
mas do ponto de vista da luz
do seu feixe
do som sem fúria ou esgotamento
tudo é contínuo
onda alheia ao comprimento
sabor livre do pensamento
a máquina se pensa nos homens
como os mitos
no bolso de lévi-strauss

numa aterrisagem esfumaçada e líquida
atravesso sua pele raiz oliva
em forma de poros vulcânicos
canyon de montanhas microscópicas
mil léguas viajam sob as pernas bambas
pélvis estilhaçada contra o desfiladeiro de sua boca e garganta
vejo reparos nas constelações
vértices imperfeitos
álgebra dos açúcares na fruteira
o humano implodido
em carne e tendões
intumescências jactos
fluxos bombeamentos e viscosidades
índice onomástico consultado
nada indica
onde se registra o que fica
na geografia do corpo
órbita dos planetas
química de nossos cérebros
equilíbrio de temperos na cozinha
o valor incomensurável de sua presença
em alguma região de nossos córtices
esse mar de sinapses
escorrido o sódio o potássio o ácido
secará como cardumes fossilizados
emergidos no chão deste deserto
picho nas paredes internas do meu crânio
"estive aqui, olhei chuvas e luas desde a porta desta caverna
queria que tua herança fosse mais
do que senão e os rastros da espuma
sem título 1960-1986"

poeminha de aniversário

não me pergunte
pelo sentido da combustão do tempo
ou das versões de nossas peles
sob a camisa tanto faz
que você diga visibilidade
diante da lua ao que ontem dizíamos brilho
a estrutura permanece a mesma
sob as “saudades dos mitos pretéritos” ou futuros
pressurizadas em círculos de tinta
as datas comemoradas no calendário
flutuam inertes na atmosfera
indiferente do universo
explosões de hélio
meteoros esfriando no chão da garagem
braço engessado finais de
tese e de campeonato o vão
crescente da porta
aura trincada
não vista mas por
onde sempre partimos e se
as receitas especiais de ophélia
forem invocadas neste rito
bata também o bolo diário na
madeira três vezes como a
terra ainda morna finja que
luz não é seu alimento e
andando sobre os dias e as
palavras não tenha
pressa pois toda poesia como nós é
feita de véspera com ou
sem ponto vírgula respire e
viva cada rima que esta
frase eu você tudo
termina

geertziana
 

com a proximidade
de um novo carregamento de canetas esferográficas
planejo o tráfico de novidades exóticas:
encantamento para as canoas voarem
etnografias do amor incompreendido
à luz dos terraços de arroz em bali
em meio à fúria das vaginas dentadas
e segredos da fabricação dos grandes homens

enquanto isso
limpo pedaços de cerâmica
perdidos numa linguagem de máquina indecifrável
abro parênteses e fecho parágrafos
o caleidoscópio gira
e passo longas horas olhando o teto úmido
de nossas tendas armadas
sobre a pele da noite deserta.

ensaio sobre o dom - poema
 

qualquer que seja
o tempo que leve
a leitura deste verso
ou o segundo em que um ano deixa de ser
a medida gasta de um sonho pretérito
e se torna a esperança de um veio inexplorado
o tempo da coisa contada
não é o mesmo da coisa vivida
anos de paisagem cabem numa frase:
“feliz noite em que nascestes”
“bendita a hora de sua chegada”
sem a engenharia dos transatlânticos
sentimentos comuns dispersam-se pelo mundo
vejo-os atravessando oceanos
oxidando o sol e afundando seus lastros de ouro
em almas que não se sabiam tão leves e profundas
como o teu rosto adormecido em minha lapela
num dia de primavera

receba esta dádiva
como presentes em chamas
elevando aos céus a essência de todas as dádivas:
dar, receber e retribuir
o que pode haver de mais humano
senão a compaixão com que nos reconhecemos
no abraço desta noite?
 

poema das expedições etnográficas

 

em expedições
perdem-se muitas coisas:
um guarda-chuva preto, um guarda-chuva colorido
um chapéu, um tripé, um colete, a jaqueta,
mala sem alça, teu par de tênis, camiseta

mas há também achados
o esse das pipas sobre os céus das lajes
a leveza dos corações sob elas

de uma cratera no peito nos olhamos por dentro
do cimo dos edifícios nos vemos meteoros

com sorte achamos a estátua do pai
que resgatado de sua natureza de bronze e pedestal
nos leva, humanos, para casa

bolinha de gude entre as mãos
bola de capotão entre os pés
diante dos estilhaços das janelas quebradas
vemo-nos arfantes na rua - meninos e regozijos
ou refletidos no sofá sob a manta de um cansaço doce

encontramos palácios na indústria do dia a dia
o desejo sem espaço no pouco espaço da vã
filosofia dobrada na esquina e já é outro dia
avenida

num corte estratigráfico
o passado se mede pelo carbono do sonho apagado
damo-nos as mãos e dançamos no outono da vida
damo-nos as mãos e da olaria surgem quarto e cozinha

em expedições
empilhamos os dias como gravetos
e os queimamos pacientes
sob a lua de uma varanda em cinzas

invadimos terras, ocupamos bares
subimos morros, falamos aos quintais
rezamos de joelhos
e também abrimos gavetas

e seguimos pistas
dos diferentes tons de pés sobre as calçadas
dos diferentes ruídos de chuva sobre as capelas
dos anunciantes de ouro e óculos
coaxando imóveis com seus estandartes amarelos

em expedições
perdem-se muitas coisas
outras são achadas
inclusive as não sabidas possuídas
ou mesmo sequer procuradas

sob a textura dos tapetes
abaixo dos chapeis
em frente aos tripés
no bolso dos coletes
 
 

bosque sagrado ndembu 

boi nuer 
jardim de coral trobriandes 
arco e cesta guaiaquis 
casa dogon 
quintal krahó 

e acima destes pensamentos domésticos 
o universo todo se expande 
intercalando buracos negros, revoluções neolíticas 
e uma fina garoa que não passa.
 

versão crua: 

a onça que nos traz o fogo 
é o amor nosso de cada dia 

versão cozida: 
se os alimentos são bons para pensar 
enquanto como 
penso 
que te amar 
e ter bons modos à mesa
são os únicos ritos de civilidade possíveis 
 


 
totemismo ontem 

não era animal ruminante 
nem tinha os cascos fendidos 
nem totem do coração 
nem totem da mente 
assim próximos se distinguiam 
homem serpente gavião 

hoje, totêmico ainda 
escarifico sua pele 
sem a crueza dos artefatos líticos 
de ranhuras expondo 
a carne abstrata das aves 
pintadas 
nas rochas dos abrigos 
versão up to date 
desses impulsos que não passam 
graxa nas unhas 
cheiro de peixe na mão 
metalurgia que nos forja 
por dentro: 
lua firmamento razão 
 
 
vistos de cima

sentimentos são 
búfalos selvagens 
porém 
o vapor das pálpebras 
embaça trechos 
janela, elevador, área de serviço 

vistos de baixo 
sem altitude, mordo o anzol 
dorso céu e caio 
num canto morno do quintal