Resenha

Legados da Fé Brasileira

Livro do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva analisa a trajetória do Candomblé e da Umbanda e sua relação com a história do Brasil

Alfredo Boneff é jornalista

Das perseguições no período colonial e na República, até a aceitação por parte de setores da intelectualidade brasileira nas décadas de 1970 e 1980, o Candomblé e a Umbanda percorreram trajetos que se inserem fortemente no âmbito da cultura nacional. São práticas religiosas que sempre travaram constante diálogo com outras matrizes formadoras da identidade brasileira, como a indígena e a européia. Esses caminhos são analisados pelo antropólogo Vagner Gonçalves da Silva em “Candomblé e Umbanda - Caminhos da Devoção Brasileira”, oportuna reconstituição da história das principais religiões afro-brasileiras, lançada pelo Selo Negro Edições. Mais do que simplesmente iluminar o processo de estabelecimento e consolidação de tais expressões de religiosidade, Vagner enfatizou sua relação intrínseca com aspectos diversos de nosso país e sua contribuição para um entendimento do que seja o povo brasileiro. 

As religiões afro-brasileiras são um tema bem conhecido de Vagner. Bacharel em Ciências Sociais e doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), ele publicou anteriormente os livros “Orixás da metrópole” (Editora Vozes) e “O antropólogo e sua magia” (Edusp). Atualmente professor do Departamento de Antropologia da USP, coordena a coleção “Memória Afro-Brasileira”, do Selo Negro Edições. 

O primeiro volume da coleção, “Caminhos da Alma”, foi uma coletânea de professores, sociólogos e antropólogos que analisavam a atuação de alguns dos protagonistas na consolidação das manifestações religiosas afro-brasileiras. “Artes do Corpo”, segundo volume, abordava a presença e contribuição dos afro-descendentes nas artes e manifestações lúdicas e populares. 

Um terceiro volume, sob o título “Imaginário, cotidiano e poder” está a caminho e, além de apresentar a trajetória de figuras fundamentais como Chico Rei, escrava Anastácia e vovó Antonica (líder de um quilombo na região de Paraty), esmiuçará tópicos como o processo de enegrecimento de Nossa Senhora de Aparecida. 
 

Diálogos e culturas

No caso de “Candomblé e Umbanda - Caminhos da Devoção Brasileira”, Vagner visitou cerca de 50 terreiros em São Paulo, nos quais entrevistou pais e mães de santo. Um levantamento que, posteriormente, incluiu outros estados brasileiros e resultou no livro “Orixás da metrópole”, de 1995 e que foi fundamental para o atual lançamento. “Percebi o desconhecimento das pessoas em relação a essas religiões, que nos mostram muito da forma de ser do brasileiro”, diz o antropólogo. 

A intenção é tornar a obra acessível ao maior número de leitores. Para isso, Vagner preferiu evitar um tom mais ensaístico. “A ênfase é menos na parte teórica, de análise das religiões, do que no processo histórico. O objetivo é atingir o leitor que não conhece tais religiões”, explica. 

Um dos pontos ressaltados pelo autor é a relação das práticas religiosas originárias da África com as culturas indígena e européia. “As religiões afro-brasileiras se formam a partir do contato, dos diálogos e desencontros com essas outras duas matrizes. Procurei identificar o que havia de comum entre elas”, afirma. 

Um desses aspectos é uma certa restrição ao que se convencionou chamar de sincretismo religioso. De acordo com Vagner, esta noção é limitada, pois não abarca as especificidades do Candomblé e da Umbanda. “Na verdade, as culturas se olham num espelho. Mas não se pode dizer que São Jorge seja Ogum. É a versão católica de Ogum, como Ogum é a versão da Umbanda para São Jorge”, analisa. 

A própria oposição entre religiões ditas monoteístas, como a católica, e politeístas, caso da Umbanda e Candomblé, é questionada pelo estudioso. Ele defende a tese de que todas essas crenças são, simultaneamente, mono e politeístas. “O topo do catolicismo é formado por uma trindade. E nele sempre houve a devoção a santos intercessores, aqueles que regem determinadas partes do universo”, aponta. 
 

Perseguições seculares

O preconceito dirigido aos cultos afro-brasileiros desde o período colonial também é abordado pelo antropólogo. Na opinião de Vagner, tais expressões representavam um desafio ao catolicismo colonial que, por sua vez, também tinha características mágicas. Era, por assim dizer, uma afronta à magia oficialmente instituída. 

A República viria a mudar esse quadro, mas apenas utilizando os mecanismos de repressão. É nessa época - final do século 19 e inicio do século 20 - que o médico baiano Nina Rodrigues desenvolveu suas pesquisas, que serviram como uma das fontes para o livro de Vagner. São trabalhos ainda caracterizados pelo forte preconceito, tentando demonstrar o caráter primitivo dos cultos vindos da África e a incapacidade de abstração que estaria presente, por exemplo, na religião católica.

Também médico, Arthur Ramos foi mais um autor e pesquisador que serviu como referência, com obras como “O negro brasileiro” e “Aculturação negra no Brasil”, editadas nas décadas de 1930 e 1940. O francês Roger Bastide e seu “O Candomblé da Bahia” (1958) também foram consultas importantes para o livro. A pesquisa inclui ainda o que o autor define como “fontes que escreveram uma história às avessas”, ou seja, os autos da Visitação do Santo Ofício da Inquisição e boletins policiais dos séculos 19 e 20. “O que permitiu a reconstituição da história foi o cruzamento dos registros oficiais com as entrevistas. Felizmente, a partir do século 20, muitos pesquisadores passaram a produzir estatísticas mais neutras, sem envolvimento com a repressão”, diz. 

O antropólogo focaliza também a influência do Candomblé e da Umbanda em campos diversos e por meio de figuras com Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, mãe de santo em cujo terreiro, na Praça Onze, costumavam se reunir pioneiros na maturação do samba como linguagem musical, como Pixinguinha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e Donga. A presença dos cultos de origem africana em festas populares como a congada e o reisado também merece espaço na obra. 

O livro analisa ainda o processo de consolidação e penetração na classe média, sobretudo a partir da década de 1970. No caso do Candomblé, com a difusão deflagrada por artistas e intelectuais ligados à religião, como Jorge Amado, Dorival Caymmi, Caetano Veloso e Maria Bethânia. Algo semelhante acontece em relação à Umbanda, que literalmente ganha voz em interpretações de cantores como Clara Nunes e Martinho da Vila. 
 

Demonização e intolerância

No entanto, de acordo com o autor, um movimento antagônico tomou força nos últimos anos. Trata-se do crescimento das chamadas religiões neo-pentecostais, que combatem de diversas formas as religiões afro-brasileiras. “Houve um processo de legitimação de tais religiões, mas essa legitimidade vem sendo paulatinamente corroída pelo fenômeno religioso do neo-pentecostalismo. O que está acontecendo é a construção de uma anti-imagem”, alerta Vagner. O antropólogo esclarece, no entanto, que nem todas as correntes evangélicas atuam nesse sentido, o do preconceito, intolerância e desinformação.

Ele chama atenção para práticas que extrapolam o âmbito religioso, como no caso de grupos evangélicos que promovem eventos como a Capoeira do Senhor, adaptação realizada sem os cânticos africanos tradicionais. “Este é um processo fortíssimo de contra-informação”, denuncia. 

Atualmente, Vagner dedica-se à organização de uma coletânea de artigos sobre a questão da intolerância religiosa, que deverá ser publicada em junho ou julho. Entre os autores estarão especialistas nas religiões afro-brasileiras e neo-pentecostais e advogados voltados a aspectos jurídicos da liberdade religiosa. Ele repele os estigmas que costumam acompanhar as tentativas de certos grupos evangélicos, tentando demonizar a Umbanda e o Candomblé, associando-as ao atraso. 

“Não há nada de demoníaco nas religiões afro-brasileiras. O que existe é a convivência de matrizes religiosas, fruto da experiência multifacetada que o país viveu. Conhecer a história do Candomblé e da Umbanda é conhecer o Brasil e os caminhos através dos quais a devoção brasileira fez peregrinação”
 
 

Publicado na On Line Afirma Revista Negrahttp://www.afirma.inf.br/htm/cultura/cultura.htm