Resenha

Silva, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras, São Paulo, Edusp, 2000, 194 pp.

ETNOGRAFIA E MAGIA

Marcia Contins

O tema deste livro nos remete a uma das áreas de estudo mais tradicionais e importantes desenvolvidas no Brasil dentro da antropologia cultural ou social: os estudos de religião, principalmente aqueles relacionados às chamadas religiões afro-brasileiras: candomblé, umbanda, tambor de minas entre outros. 

Classificando esses estudos entre os chamados “clássicos” (realizados por Nina Rodrigues, Roger Bastide, Arthur Ramos, Pierre Verger); e autores contemporâneos, principalmente a partir da década de 70 até dos dias atuais, Vagner Gonçalves da Silva propõe discutir as pesquisas de campo e as etnografias realizadas por esses últimos em pesquisas conduzidas junto a comunidades religiosas afro-brasileiras. A questão principal de suas reflexões é a presença do antropólogo no campo e as diferentes dimensões de relacionamento entre ele e os grupos estudados. Discute também, exaustivamente, o modo como esse relacionamento se reflete na pesquisa desses autores e como se processa a transformação da experiência de campo em texto etnográfico. Finalmente analisa a forma pela qual os textos etnográficos são lidos e apropriados pelos grupos religiosos estudados. 

O que torna interessante este livro, originalmente sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, são as perguntas que o autor dirige à experiência social e intelectual aos antropólogos e pesquisadores na área dos estudos afro-brasileiros. Essas questões, colocadas por alguns antropólogos (e historiadores da antropologia) norte-americanos na década de 80, levam em conta as condições de coleta de dados de campo que envolvem dimensões intersubjetivas, focalizando as relações de poder que se estabelecem entre antropólogos e o grupo pesquisado, afetando assim as interpretações elaboradas no texto etnográfico. 

Vagner escolheu voltar sua reflexão para as pesquisas etnográficas em comunidades religiosas afro-brasileiras, após uma longa convivência dele mesmo no campo, seja enquanto adepto do candomblé, num primeiro momento; seja enquanto pesquisador, num segundo momento. Desse modo, as questões sobre intersubjetividade e relacionamentos entre pesquisador e pesquisado já faziam parte de seu universo de pesquisa, antes mesmo de decidir-se pela problemática de sua tese.

Vagner discute alguns traços que distinguem a experiência da observação participante nos estudos sobre as religiões afro-brasileiras e as dificuldades no estudo de uma religião de transe, que foi, durante anos, duramente perseguida. Na apresentação desses traços o autor discutiu com antropólogos e também com religiosos (que são também pesquisadores --- não-acadêmicos --- destas religiões), sob as perspectivas do observador e dos observados. Na perspectiva do observador relacionou as principais etnografias tanto de alguns autores clássicos, de Nina Rodrigues a Roger Bastide, quanto de etnógrafos contemporâneos e como são representadas as condições do trabalho de campo nessas obras. A partir das etnografias e das biografias desses autores clássicos e dos etnógrafos contemporâneos e também, principalmente, dos diálogos pessoais com alguns destes últimos, Vagner tenta reconstituir as transformações verificadas no trabalho de campo desses etnógrafos. Desse modo, o que o livro nos mostra é muito mais do que uma simples história linear da antropologia brasileira na área dos estudos das religiões  afro-brasileiras. 

O livro promove uma historicização desses estudos, tendo como foco central, as etnografias e o trabalho de campo nesta área. Fazendo referência a Malinowski e seu entendimento da natureza da etnografia e, especificamente, à “magia do etnógrafo” que, segundo o próprio Malinowski, consegue “...evocar o verdadeiro espírito dos nativos numa visão autêntica da vida tribal...” através de sua longa estada no campo, Vagner propõe discutir as condições do trabalho de campo e da produção de etnografias dos antropólogos contemporâneos que se dedicaram a essa área de estudos (já que os dados de campo relativos aos etnógrafos clássicos não são disponíveis).

O livro descreve, na perspectiva dos observados e a partir de entrevistas realizadas com antropólogos de vários centros acadêmicos do Brasil, as diversas situações que eles enfrentam ao estudarem religiões afro-brasileiras. O autor discute a chegada dos etnógrafos ao campo, os constrangimentos que estes sofrem, a escolha de seus interlocutores, a importância dos diálogos que mantém com seus observados até a realização do texto final. 

Um dos pontos principais do livro está no que o autor chama de “diálogo etnográfico”. Vagner vai relatar, através de sua própria experiência de campo como pesquisador, e enquanto adepto do candomblé, e através das entrevistas com os outros pesquisadores, a relação de diálogo que eles mantêm com os observados. Neste sentido, o entendimento da observação participante vai muito além de uma simples técnica ou de um procedimento metodológico adotado pelo pesquisador para conhecer a comunidade estudada. O livro discute, na perspectiva do diálogo etnográfico, a participação ativa dos antropólogos nos rituais de iniciação das religiões afro-brasileiras e em alguns casos mais extremos a própria conversão destes a essas religiões. É interessante observar que quase todos os antropólogos que estudaram as religiões afro-brasileiras, inclusive os etnógrafos clássicos citados no livro, lidam com esta questão. É possível, do ponto de vista do antropólogo, ter acesso ao grupo religioso apenas como observador ou é preciso observar de dentro, tornando-se nativo? Esse é um dos pontos centrais mais discutidos e descritos pelo autor através dos depoimentos de seus entrevistados e das etnografias selecionadas por ele para análise. Não há propriamente um consenso entre os pesquisadores, mas todos sublinham a importância do tema da inserção nos grupos religiosos. O autor não traz, enfim, uma discussão ingênua da problemática do trabalho de campo, mas situa essa discussão dentro da questão diálogo que o etnógrafo mantém  com os seus pesquisados.

Na perspectiva dos observados, o livro trata principalmente da maneira pela qual os grupos religiosos apropriam-se tanto do texto escrito pelos antropólogos, quanto dos possíveis resultados da pesquisa para a comunidade estudada. Nesta perspectiva, os diálogos entre observados e etnógrafo são intensos. Os religiosos descrevem o processo de pesquisa do qual participaram, focalizando a presença do antropólogo no grupo religioso, a relação que este mantém com eles e a suas participações nos resultados finais da pesquisa. 

O livro trata ainda das etnografias realizadas pelos próprios pais e mães de santo que se tornam autores e, dentro desta discussão, alguns antropólogos defendem a iniciação dos etnógrafos como parte de sua pesquisa, possibilitando assim a estes últimos uma “visão de dentro para fora”. Segundo o autor: “Se a iniciação dos antropólogos nas religiões afro-brasileiras é um recurso freqüente de aproximação aos valores do grupo, a forma como os próprios antropólogos se posicionam, em seus discursos, frente às crenças  que compartilham com os membros dos terreiros, revela os limites e a complexidade desse jogo de aproximação e distanciamento existente entre eles”(p.101). Desta forma o livro abre para discussões importantes sobre  ética do trabalho de campo no estudo de religiões afro-brasileiras. 

Uma originalidade da visão de Vagner manifesta-se na forma pela qual o livro está organizado. Distanciando-se de uma opção mais convencional e presente em textos e teses acadêmicas, Vagner substituiu os capítulos por vinte e dois núcleos temáticos. O texto apresenta-se de uma maneira contínua, ressaltando os núcleos temáticos e “dando assim uma visão poética do texto etnográfico”. 
Temas como “rituais de delicadeza”;  “antropólogos na encruzilhada”; “outros campos, outros gafanhotos ou: de volta às praias desertas”; “construindo textos, tecendo tradições” entre outros possibilita ao leitor múltiplas entradas de leitura, sem uma rígida totalização. 

Num diálogo com Malinowski e a crença na “magia do etnógrafo”, o autor vai fazer uso da noção de “diálogo etnográfico”. Baseando-se nos estudos recentes da historia da antropologia (George Stocking, James Clifford e outros), o autor faz uma releitura dos estudos clássicos e contemporâneos das religiões afro-brasileiras. Além de promover uma necessária historicização desses estudos, o autor mostra que, ao longo dessa tradição, tanto os chamados “clássicos” quanto os etnógrafos contemporâneos vêem-se diante de constrangimentos similares. As múltiplas personas do etnógrafo são constituídas nas relações com os observados e essa  experiência vem a ser internalizada na própria elaboração do texto etnográfico. Em contraste com os etnógrafos clássicos, talvez os etnógrafos contemporâneos estejam mais mobilizados por essa experiência. Embora esses constrangimentos sejam um traço comum a toda experiência etnográfica, o autor mostra como esses problemas parecem particularmente sensíveis nessa área de estudo.

Finalmente, vale assinalar a belíssima edição do livro.
 

Marcia Contins

Antropóloga. Professora do Departamento de Ciências Sociais da UERJ. Publicou Narrativas Pentecostais: etnicidade e religião entre pentecostais negros nos Estados Unidos e no Brasil (Cadernos do PPCIS,1997) e organizou Quase Catálogo 6: Visões da Abolição 1988 ( MIS/Secretaria do Estado e Cultura do RJ, 1998).
email: mcontins@uerj.br e mcontins@terra.com.br
 

Publicado em Religião & Sociedade, v. 21, p. 113-116, 2001